Em matéria especial para o TORCEDORES, Luiz Ferreira analisa a trajetória vencedora do inesquecível “Anjo das Pernas Tortas”
“Nunca houve um ponta direita como ele. No Mundial de 58, foi o melhor em sua posição. No Mundial de 62, o melhor jogador do campeonato. Mas ao longo de seus anos nos campos, Garrincha foi além: ele foi o homem que deu mais alegria em toda a história do futebol. Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tomassem a bola, menino defendendo sua mascote, e a bola e ele faziam diabruras que matavam as pessoas de riso: ele saltava sobre ela, ela pulava sobre ele, ela se escondia, ele escapava, ela o expulsava, ela o perseguia. No caminho, os adversários trombavam entre si, enredavam nas próprias pernas, mareavam, caíam sentados.“
As palavras de Eduardo Galeano no sensacional livro “Futebol Ao Sol e à Sombra” são o mais perfeito resumo daquele que foi a personificação da alegria dentro de um campo de futebol: Manuel Francisco dos Santos, o grande Mané Garrincha. Se Mané estivesse vivo, teria completado noventa anos de vida neste sábado (28). E essa é a nossa pequena e sincera homenagem ao maior driblador que o futebol já viu em todos os tempos e ao legado que ele nos deixou jogando pelo Botafogo e pela histórica Seleção Brasileira campeã mundial em 1958 e em 1962.
A ideia aqui não é fazer uma biografia de Garrincha, mas entender como ele impactou o imaginário do torcedor brasileiro com seus dribles, arrancadas e gols. Sim, gols. Mané é o terceiro maior artilheiro do Botafogo com 245 gols, números impressionantes para um ponta-direita mesmo na sua época. Junto com Pelé, Vavá, Didi, Zagallo, Nilton Santos e vários outros, Garrincha fez parte da chamada “era de ouro” da Seleção Brasileira com as conquistas das Copas do Mundo de 1958 e 1962. Na Suécia, Mané jogou com a camisa 11 e foi o responsável por levar as defesas adversárias à loucura jogando no nascente 4-3-3 de Vicente Feola. Garrincha avançava e Pelé e Vavá infiltravam.
O jornalista inglês Jonathan Wilson narra no seminal “A Pirâmide Invertida” que Vicente Feola orientou seus jogadores antes da partida contra a União Soviética (pela fase de grupos) com as seguintes palavras: “Lembrem-se: o primeiro passe é para o Garrincha“. Aqueles três minutos ficariam conhecidos com os mais incríveis da história do futebol e comprovaram para todo o planeta que uma revolução havia sido iniciada dentro dos gramados. Passando pelos passes de Didi, pela genialidade de Pelé e pelos dribles e arrancadas desconcertantes de Mané Garrincha.
Vale notar aqui que o “Anjo das Pernas Tortas” e todo o time brasileiro já adotavam um comportamento semelhante ao que vemos hoje. Zagallo voltava para ajudar no meio-campo, mas era o ponta que abria o jogo pela esquerda. Pelé, o camisa dez por excelência se juntava a Vavá no comando de ataque, Didi armando o jogo, Zito marcando e se multiplicando e Garrincha abrindo o campo para partir na direção da linha de fundo com a bola dominada. Amplitude para abrir as defesas adversárias (no caso, o WM da Suécia) e abrir espaços para os companheiros de equipe.
Quatro anos mais tarde (no Chile), Garrincha assumiria o papel de protagonista na Seleção Brasileira com a lesão de Pelé na partida contra a Checoslováquia ainda pela fase de grupos. Ao invés de permanecer no lado direito, contrariou os pedidos de Aymoré Moreira e circulou por todo o campo. Com Zagallo mais meio-campista do que ponta pela esquerda naquele mundial, Mané apareceu no lado esquerdo, ajudou na criação das jogadas e se transformou no fator de desequilíbrio de uma seleção quatro anos mais velha, porém quatro anos mais experiente. Os gols contra a Inglaterra e contra o Chile são bons exemplos do ponta que deixava o lado e vinha ocupar o lugar do ponta de lança.
É interessante notar que Garrincha não é o jogador mais fácil de se analisar por conta de uma série de motivos. O maior deles é o jeito rebelde e alegre quando tem a bola. Como encaixar um jogador desse num esquema tático? Como fazê-lo cumprir funções táticas dentro de campo? Ainda bem que Vicente Feola, João Saldanha, Aymoré Moreira, Marinho Rodrigues e outros treinadores que comandaram Mané Garrincha perceberam que a melhor decisão era construir o jogo em torno dele e dar condições para que ele desequilibrasse como fez em vários anos de sua carreira.
O Botafogo do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 só não foi mais longe por causa do Santos de Pelé, Zito e Pepe. Mesmo assim, foi três vezes campeão carioca (1957, 1961 e 1962), duas vezes campeão do antigo Torneio Rio-São Paulo (1962 e 1964) e vencedor de campeonatos importantes como o tradicional Torneio de Paris (em 1963). Com a camisa alvinegra, Garrincha repetia aquilo que o mundo conheceu com a Seleção Brasileira. O ponta driblador que vai até a linha de fundo ou parte em diagonal na direção do gol. A personificação do ponta brasileiro.
Em crônica publicada no Jornal do Brasil no dia 21 de janeiro de 1983, (data do falecimento de Mané Garrincha), Carlos Drummond de Andrade escreveu: “Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico, farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo que nos alimente o sonho.“
Para este que escreve, se Pelé foi o maior jogador que esse mundo já viu, o nosso “Anjo das Pernas Tortas” foi o jogador que melhor traduziu o sentimento que o velho e rude esporte bretão pode nos proporcionar. E ainda não recuperamos essa alegria desde que nosso Mané Garrincha se foi.
FONTES DE PESQUISA:
RSSSF Brasil / Arquivo da Seleção Brasileira
Site oficial do Botafogo Futebol e Regatas
Futebol Ao Sol e à Sombra, de Eduardo Galeano (L&PM Editores)
A Pirâmide Invertida, de Jonathan Wilson (Editora Grande Área)
Os 55 maiores jogos das Copas do Mundo, de Paulo Vinícius Coelho (Panda Books)
Escola Brasileira de Futebol, de Paulo Vinícius Coelho (Editora Objetiva)
Garrincha, Alegria do Povo, documentário de Nelson Pereira dos Santos