Luiz Ferreira explica como o “Rei do Futebol” e o “Gênio das Pernas Tortas” se entendiam em campo na coluna PAPO TÁTICO
Pelé consagrou uma porção de jogadores ao longo dos seus mais de vinte anos de carreira. Podemos citar Pagão, Coutinho, Vavá, Toninho Guerreiro, Tostão e outros grandes nomes do futebol brasileiro. No entanto, nenhum o “Rei do Futebol” não teve nenhum companheiro tão genial e tão endiabrado como Mané Garrincha. Muita gente, inclusive, considera o “Gênio das Pernas Tortas” tão ou mais genial do que o próprio Pelé jamais foi em toda sua vida. Só que a ideia aqui não é essa. O objetivo é mostrar como estes dois gênios (quase entidades cósmicas vindas de um outro mundo) se transformaram numa das duplas de ataque mais fantásticas e mais “apelonas” da história do futebol.
Pelé e Garrincha já frequentavam a Seleção Brasileira antes da Copa do Mundo de 1958, mas primeiro jogo dos dois com a amarelinha aconteceria apenas no dia 18 de maio daquele ano, na vitória por 3 a 1 sobre a Bulgária. Vicente Feola escalou o Brasil com Gylmar; De Sordi, Mauro Ramos, Jadir e Nilton Santos; Roberto Belangero e Moacir; Garrincha, Mazzola, Pelé e Canhoteiro. Muita gente curtiu a “química” do “Rei do Futebol” com aquele que já era chamado de “Alegria do Povo” por vários cronistas. No entanto, a comissão técnica da Seleção Brasileira tinha outros planos para a equipe. Tanto que a equipe que estreou no Mundial da Suécia não teve os dois em campo.
Por motivos que vão da descrença no potencial de dois dos maiores gênios da história do futebol até um certo racismo estrutural disfarçado de “metodologia”, Pelé e Garrincha (já ídolos no Santos e no Botafogo) não entraram em campo na vitória sobre a Áustria e no empate sem gols contra a Inglaterra. Com três pontos (a vitória valia apenas dois pontos na época), o Brasil precisava vencer a temida União Soviética para se garantir nas quartas de final. O jogo contra os ingleses também provocou baixas na Seleção Brasileira. Mazzola, Dino Sani e Joel se queixavam de problemas físicos. Zito entrou no meio-campo ao lado de Didi e Pelé e Garrincha entraram no ataque.
Vale lembrar que muitos falavam na época que os jogadores pretos e mestiços não tinham condição de representar a Seleção Brasileira. Muita coisa vinha do trauma de 1950, quando Barbosa, Bigode e Juvenal levaram a culpa pela derrota para o Uruguai. A “crença” só se desfez completamente quando a bola rolou naquele dia 15 de junho de 1958. Os primeiros três minutos daquela partida ficariam conhecidos como os “três minutos mais incríveis da história do futebol” depois de reportagem publicada pelo francês Gabriel Hanot (ex-jogador, ex-treinador, jornalista e editor do famoso jornal L’Équipe). O que os mais de 50 mil espectadores presentes no Estádio Ullevi foi pura magia.
A ideia de Vicente Feola era intimidar os soviéticos com a habilidade brasileira desde o início. Com menos de vinte segundos de partida, o experiente lateral Boris Kuznetsov foi driblado três vezes por Garrincha. O “Gênio das Pernas Tortas” passou por Yuri Voinov e carimbou a trave da lenda Lev Yashin. Pelé também fez das suas antes de Didi deixar Vavá na cara do gol com belo passe em profundidade. Mas o que impressionava de verdade era a “química” que nascia ali daqueles primeiros minutos. A impressão que fica depois de rever os filmes oficias da Copa do Mundo de 1958 é a de que os dois se procuravam instintivamente, quase que por telepatia daquele 4-2-4/4-3-3 nascente.
O Brasil acabaria vencendo por dois a zero (com mais um gol de Vavá no segundo tempo) e garantindo a sua classificação. O entendimento entre Pelé e Garrincha foi ficando mais e mais claro e impressionante. No duro jogo contra País de Gales, Mazzola voltou ao time no lugar de Vavá (lesionado), mas a formação básica da Seleção Brasileira não foi modificada. Aliás, é possível afirmar sem muito medo de errar que Pelé e Garrincha ajudaram a solidificar o 4-3-3 que nascia naquela Copa do Mundo. Se Zagallo recuava para ajudar na marcação pelo meio-campo, o “Gênio das Pernas Tortas” tomou conta do lado direito de ataque e o “Rei do Futebol” se multiplicou no campo de País de Gales.
O estilo de jogo da Seleção Brasileira ficou tão fluido com Pelé e Garrincha no time que ficava difícil até entender a movimentação dos dois no campo de ataque. Tudo se completava de forma tão perfeita no time de Vicente Feola que rever os vídeos antigos ainda é uma tarefa extremamente prazerosa. Zagallo guardava mais sua posição quando Didi subia ao ataque. Se Garrincha aparecia mais por dentro, Vavá abria pela ponta. E com o camisa 20 mais afastado da área, Pelé ocupava o setor. Sempre com aproximações, toques rápidos e com os dois gênios procurando um pelo outro no comando de ataque. Os jogos contra França (nas semifinais) e Suécia (na decisão) são bons exemplos disso.
Ao todo, foram 40 partidas da nossa dupla na Seleção Brasileira e incríveis 36 vitórias. Pelé marcou 44 gols e Garrincha balançou as redes onze vezes. Curiosamente, o “Gênio das Pernas Tortas” marcou 17 gols defendendo o escrete canarinho. Fazendo as contas, Mané marcou 64% dos seus tentos quando esteve jogando ao lado do “Rei do Futebol”. A parceria prosseguiu após a conquista da Copa do Mundo em 1958. Quatro anos depois, a dupla iniciaria a disputa do Mundial do Chile com uma vitória sobre o México e um empate contra a Tchecoslováquia, jogo onde Pelé se lesionou e deu lugar a Amarildo. Foi do banco de reservas que o camisa 10 viu o Brasil levantar mais uma Copa do Mundo.
Curiosamente, a última partida de Pelé e Garrincha juntos na Seleção Brasileira aconteceu contra a mesma Bulgária no dia 12 de julho de 1966, na Copa do Mundo da Inglaterra. Ao invés do trabalho coeso e consistente dos Mundiais da Suécia e do Chile, o Brasil vivia uma época de incertezas e de muita confusão dentro e fora de campo. Vicente Feola voltou ao comando do time, mas apostou num 4-2-4 mais estático que exigia muita movimentação de Pelé no meio e que confiava demais no talento de uma geração envelhecida e já desgastada. Garrincha, por exemplo, já não conseguia mais encaixar seus dribles como antigamente. Mesmo assim, o Brasil venceu por 2 a 0 com gols de Pelé e Garrincha.
Este que escreve confessa a inveja que sente de todos aqueles que tiveram o privilégio de ver Pelé e Garrincha juntos em campo defendendo as cores da Seleção Brasileira. A química entre os dois era nítida e um complementava o outro com seus talentos únicos. É verdade que muitos consideram o “Gênio das Pernas Tortas” como o mais genial jogador que já existiu, acima até mesmo do “Rei do Futebol”. Por outro lado, o próprio Garrincha fazia questão de se colocar abaixo de Pelé, no reconhecimento dos feitos do amigo e companheiro de Seleção Brasileira. E se aquele que ficou conhecido como a “Alegria do Povo” reverenciou o “Rei do Futebol”, quem somos nós para discordar, não é mesmo?
FONTES DE PESQUISA:
RSSSF Brasil / Arquivo da Seleção Brasileira
Site oficial da FIFA
A Pirâmide Invertida, de Jonathan Wilson (Editora Grande Área)
Os 55 maiores jogos das Copas do Mundo, de Paulo Vinícius Coelho (Panda Books)
Escola Brasileira de Futebol, de Paulo Vinícius Coelho (Editora Objetiva)
As melhores Seleções Brasileiras de todos os tempos, de Milton Leite (Editora Contexto)