Luiz Ferreira destaca os principais capítulos do caso em matéria especial para o TORCEDORES.COM
O dia 15 de dezembro faz parte do seleto grupo de datas históricas para o futebol mundial. Não se trata aqui do aniversário de uma das muitas lendas do futebol ou de uma grande conquista. Há quem diga que foi nesse dia em que vimos o futebol deixar de ser esporte para se transformar num grande negócio. Mas também temos aqueles que afirmam com veemência que foi nessa data que os jogadores finalmente ganharam poder. Certo é que o velho e rude esporte bretão mudou para sempre quando Jean-Marc Bosman, um jogador de futebol belga sem muito destaque dentro dos gramado ganhou a atenção do mundo ao conquistar o direito de se transferir para onde quisesse ao final de seu contrato nas cortes judiciais da União Europeia. Parece óbvio hoje em dia, mas era desse jeito que as coisas funcionavam no futebol de três décadas atrás. E é essa história que vamos contar aqui no TORCEDORES.COM.
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Não é exagero dizer que Bosman mudou o mundo. A decisão proferida em 15 de dezembro de 1995 acabaria por potencializar a capacidade comercial do esporte como um todo, fazendo com que a economia acabasse por determinar também o que acontece dentro de campo. É lógico que nem todos se beneficiaram com os impactos das mudanças ocorridas no relacionamento entre clubes e jogadores. Afinal de contas, não é por acaso que a FIFA e demais confederações e entidades esportivas criaram uma série de regulações para tentar diminuir o impacto do chamado “Caso Bosman” em todo o planeta. Costas para jogadores formados num determinado país e o chamado “Fair Play Financeiro” são algumas dessas leis criadas nos últimos anos. Certo é que todas as transformações provocadas por Bosman e seu desejo de jogar aonde quisesse após o término do seu contrato não podem mais ser mudadas.
Jean-Marc Bosman foi um jogador de futebol sem muito destaque dentro dos gramados nascido no dia 30 de outubro de 1964. Começou a sua carreira no tradicional Standard de Liège (clube da sua cidade natal) em 1983 e lá permaneceu lá por cinco anos até se transferir para o RFC Liège. Ao final da temporada de 1989/90, RFC Liège e Bosman não chegam a um acordo sobre a renovação de contrato. Naquela época, o jogador já havia se revoltado contra as reduções no seu salário e recusado o corte de 75% nos seus vencimentos propostos na renovação de seu compromisso com o clube belga. Bosman chega a se acertar com o Dunkerque (time da segunda divisão francesa), mas o RFC Liège se recusa a liberar o atleta sem que haja uma compensação financeira por parte do seu novo clube. Diante dessa situação, acabaria suspenso por tempo indeterminado pela Federação Belga por se recusar a aceitar o corte no seu salário.
Interview: Jean-Marc Bosman: 'I did something good – I gave players rights’ https://t.co/1FWjeYF7hk (Pic: Corbis) pic.twitter.com/D0l5sTaci9
— Guardian sport (@guardian_sport) December 12, 2015
A história parece completamente inverossímil para quem acompanha o futebol há pouco tempo, mas era dessa maneira que os clubes tratavam seus jogadores. No início da temporada 1990/91, Jean-Marc Bosman decidiu mover uma ação contra o RFC Liége já que estava impedido de jogar profissionalmente por outros clubes. Em novembro de 1990, o jogador ganhou na justiça comum da Bélgica o direito romper seus vínculos contratuais e assinou com o Olympique Saint-Quentin, clube que disputava a terceira divisão da França. O RFC Liège, por sua vez, recorrer às instâncias superiores e impediu Bosman de atuar como jogador profissional até que uma nova sentença fosse proferida. Nesse período, o jogador passou a receber o seguro desemprego da França e passou pelo CS Saint-Denis (equipe da Ilha de Reunião), mas não obteve sucesso e retornou ao seu país natal em 1992.
De volta à Bélgica, Bosman permaneceu um ano sem jogar futebol profissionalmente até que assinou com o Royal Olympic Club de Charleroi-Marchienne, equipe que disputava a segunda divisão do campeonato nacional. Em 1994, se transferiu para o Visé, da quarta divisão. Até que em março de 1995, o Tribunal Supremo da Bélgica rejeitou o recurso apresentado pelo RFC Liège e todas as apelações feitas pela Federação Belga e pela própria UEFA. O caso foi enviado para o Tribunal de Justiça da União Europeia dois meses depois por conta do fato mais do que evidente que o problema não era específico de Bosman ou do futebol da Bélgica, mas de todo o sistema de transferências de jogadores do futebol europeu naqueles tempos. Os advogados de Bosman construíram a defesa com base no Tratado de Roma (assinado em 1957) que garantia a livre circulação de pessoas, trabalhadores, capitais e serviços.
📅 ON THIS DAY | 1995
📄 The Bosman ruling
A European court declared that out-of-contract footballer Jean-Marc Bosman could move to a club in a different country without the new club paying a fee.
Clubs could no longer refuse to release players at the end of their contracts. pic.twitter.com/8zlaxBOd5M
— FourFourTwo (@FourFourTwo) August 20, 2018
Ao mesmo tempo em que a defesa do belga argumentava que os jogadores de futebol deveriam ser considerados trabalhadores como qualquer outro e que eles estariam livres para trabalhar e circular pelos países que compunham a União Europeia, a UEFA apresentava um manifesto que contava com a assinatura de mais de 40 federações de futebol no qual alertava para os impactos que uma decisão favorável a Bosman teria a curto e a longo prazo. Até que, naquele histórico dia 15 de dezembro de 1995, o Tribunal da União Europeia entendeu que o jogador belga tinha razão e deliberou a favor dele contra o RFC Liége, a Federação Belga e a UEFA sem qualquer direito a apelação. Jean-Marc Bosman e todos os demais jogadores de futebol da Europa estavam livres para se transferir para onde quisessem ao final dos seus contratos. O futebol jamais seria o mesmo depois da atitude daquele atleta belga.
A partir da vitória de Jean-Marc Bosman contra seu ex-clube e a UEFA, o Tribunal da União Europeia estabeleceu dois procedimentos que deveriam ser adotados pelos clubes europeus a partir daquele momento:
- O jogador de futebol não poderia ficar preso a um clube e a cobrança pela sua transferência após o término do seu contrato se tornava uma prática ilegal;
- Desde que a nacionalidade do jogador fosse de um país membro da União Europeia, ele não seria considerado estrangeiros dentro de um país membro da comunidade.
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Essas duas determinações foram fundamentais para se revolucionar completamente o futebol no final dos anos 1990. Com contratos mais flexíveis e a livre circulação de atletas dentro do Velho Continente, o velho e rude esporte bretão iniciava sua transformação em negócio. A UEFA bem que tentou buscar apoio de alguns clubes para impedir as que as novas resoluções fossem acatadas, mas não obteve sucesso. As primeiras federações a adotar as novas regras foram a Inglesa (que já via seus clubes num movimento acelerado na direção da mercantilização do futebol com a entrada dos principais times no mercado financeiro) e a da Alemanha.
Os efeitos foram imediatos. Naquele mesmo ano de 1995, por exemplo, o Ajax venceu a Liga dos Campeões da UEFA com uma equipe que tinha média de 23 anos de idade (apesar da presença dos veteranos Danny Blind e Frank Rijkaard). Pouco tempo depois, jovens valores daquela histórica equipe como Patrick Kluivert, Edgar Davids e Michael Reiziger deixaram o clube sem custos. Bastava que as ligas mais ricas oferecessem melhores salários e levassem os principais jogadores. Não foi por acaso que o mercado da bola se voltaria com muito mais atenção para a África, a Ásia e a América do Sul. Apesar das medidas tomadas para que os clubes formadores não ficassem “a ver navios”, os dias em que equipes como Ajax, Estrela Vermelha, Steaua Bucareste, Anderlecht e outras mais tradicionais conseguissem manter seus jogadores tempo suficiente para levantar taças havia terminado.
O Ajax campeão da Liga dos Campeões de 1994/95 contava com uma equipe formada quase toda na base do clube com média de idade de 23 anos. Após a vitória de Bosman nos tribunais, o clube holandês perdeu quase todos seus jogadores a custo zero para outros times mais ricos.
“Eu acho que fiz algo bom. Eu dei direito às pessoas. Agora, eu penso que pode haver uma nova geração de jogadores que não percebem quanta sorte eles têm, podendo deixar um clube e se juntar a outro, mesmo que seja quinto ou o sexto estrangeiro do elenco. Eu penso que alguns jogadores ganharam uma ótima vida – boa para eles. Eu poderia dizer que a Premier League é bela por causa de Jean-Marc Bosman. Agora já virei a página sobre tudo o que aconteceu. Porque tive várias promessas no passado, mas nunca recebi nada disso. (…) Eu tenho orgulho da lei, porque as pessoas continuarão falando sobre isso nos próximos anos, talvez mesmo depois que eu partir, em 20 ou 30 anos. Talvez eles pensem que deveriam ao menos me agradecer, nada mais” – afirmou Bosman ao The Guardian em entrevista concedia em dezembro de 2015.
Ao mesmo tempo em que os centros mais pobres do futebol viam seus principais jogadores deixarem seus clubes rumo à Europa ou na direção dos “preto-dólares” do Oriente Médio, um outro fenômeno tomaria conta do Velho Continente: a criação dos “super-times”. Equipes como o Real Madrid dos “Galácticos” entrariam para sempre para o folclore do futebol mundial por conta das altas somas de dinheiro na contratação de jogadores badalados para a época. Em 2005, os merengues eram treinados por Vanderlei Luxemburgo e contavam com nomes como Ronaldo Fenômeno, Roberto Carlos, Raúl González, Zinedine Zidane, Beckham e vários outros. Sem conquistar as tão sonhadas taças, equipes como aquele Real Madrid seriam formadas através do dinheiro e do assédio a atletas que se destacavam em outras ligas. Contratações que ganharam as manchetes dos principais jornais.
O Real Madrid de 2005 e sua constelação de jogadores é um ótimo exemplo de uma das consequências mais claras da “Lei Bosman”. Com mais dinheiro em caixa, os grandes clubes europeus buscavam formar “super-times” onde as contratações eram mais badaladas do que um grande título.
Isso acontecia porque o futebol, apesar de todas as mudanças ocorridas após a “Lei Bosman” ainda se resolvia dentro de campo. Mas quem sofreria as consequências de maneira mais séria e drástica seriam os clubes africanos. Se em 15 de dezembro de 1995, o Tribunal da União Europeia abriu as portas do continente, o Acordo de Cotonou (assinado em 23 de junho de 2000) estendeu essas disposições aos jogadores africanos. Nos últimos vinte anos, jogadores como Drogba, Eto’o, Yaya Touré, Andre Awey, Aubameyang, Obi Mikel, Asamoah Gyan, Jay-Jay Okocha e vários outros deixavam seus países cada vez mais cedo em direção ao Velho Continente. Ver um marfinense, um camaronês, um nigeriano ou todos eles e mais nacionalidades numa equipe como Liverpool, Barcelona, Manchester United e Juventus passaria a ser algo cada vez mais comum. Enquanto isso, os clubes africanos eram deixados à míngua.
O ápice dessa globalização ao extremo do futebol aconteceria no dia 22 de maio de 2010, quando a Internazionale de Milão venceria a sua terceira Liga dos Campeões da UEFA com uma verdadeira legião estrangeira e sem um único italiano entre os titulares. Eram três brasileiros, quatro argentinos, um macedônio, um holandês, um romeno e um camaronês. O Bayern de Munique (vice-campeão) não ficava atrás: eram cinco alemães, dois holandeses, um turco, um argentino, um belga e um croata em campo na decisão realizada em Madrid. Com a abertura completa das fronteiras e sem limites para jogadores “gringos”, as principais equipes do Velho Continente passariam a ser cada vez mais “cosmopolitas” e heterogêneas, fato que levou algumas federações a incentivar o trabalho nas categorias de base diante do insucesso de algumas seleções na Copa do Mundo e na Eurocopa.
A Intenazionale conquistou a Liga dos Campeões da UEFA de 2009/10 com uma verdadeira legião estrangeira e sem um único italiano como titular: eram três brasileiros, quatro argentinos, um macedônio, um holandês, um romeno e um camaronês. Globalização total e irrestrita.
Voltando à mesma entrevista concedida ao jornal inglês The Guardian em 2015, Jean-Marc Bosman falou do único aborrecimento que tem ao ver como o futebo europeu se organizou em torno do poderio financeiro: “O resultado é que agora os 25 clubes mais ricos pagam quantias astronômicas pelas transferências e os menores não podem se dar ao luxo de gastar tanto. Assim, esses 25 se distanciam cada vez mais do resto, aprofundando o abismo entre grandes e pequenos. Esse não era o objetivo da lei. Foi causado por aquilo que a Uefa e os clubes fizeram depois“, afirmou o ex-jogador. O que se vê nos dias atuais é a enorme quantia gasta com agentes em todo o mundo. A influência deles nos clubes de futebol (o português Jorge Mendes é um dos mais notórios) se tornou uma das grandes preocupações da FIFA que ainda busca meios legais de combater esse problema.
Jean-Marc Bosman conseguiu o que ninguém poderia imaginar que tivesse acontecido: lutou para que os jogadores de futebol pudessem escolher onde jogar e tivessem mais liberdade. Essa coragem fez com que ele se transformasse em “persona non grata” e que vários clubes de futebol fechassem as portas, obrigando o belga a pendurar as chuteiras aos 32 anos. Seu caso lembra muito o de Afonsinho, ex-jogador do Botafogo que brigou contra toda uma estrutura e se tornou o primeiro jogador com passe livre na história do futebol brasileiro. Assim como Bosman, também acabaria marcado pela atitude e por desafiar os poderosos do futebol. Mesmo tendo terminado sem a ajuda que vários prometeram e envolvido com problemas com a bebida e violência doméstica, Jean-Marc Bosman foi um dos grandes responsáveis por transformar o futebol no que ele é hoje.
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“Se eu pudesse voltar, eu não mudaria uma vírgula do que fiz“, afirmou Bosman à Gazetta dello Sport em 2015. “É importante que a luta continue e é isso que a FIFpro está fazendo para cuidar dos direitos dos jogadores. Nós ganhamos a batalha, mas não a guerra“, declarou o ex-jogador belga.
FONTES DE PESQUISA:
GOAL.COM: A Lei Bosman libertou os jogadores da escravidão, mas colocou uma elite no controle do futebol
TRIVELA: Dez consequências (boas ou ruins) que transformaram o futebol após a Lei Bosman
THE GUARDIAN: Jean-Marc Bosman: “I think I did something good – I gave players rights”
Le Monde Diplomatique Brasil: A miséria do futebol africano
LUDOPÉDIO: Jean-Marc Bosman: o jogador que revolucionou o futebol
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