Na quinta e última parte do especial sobre o “jogo de posição”, Luiz Ferreira analisa a maneira como o treinador catalão aplica seus conceitos no Mais Querido do Brasil e a pressão por bons resultados após a saída de Jorge Jesus
Quiseram os deuses do velho e rude esporte bretão que a quinta e última parte do nosso especial sobre o “jogo de posição” abordasse os conceitos de Domènec Torrent e seu trabalho no Flamengo após a acachapante derrota de 5 a 0 para o Independiente del Valle, na última quinta-feira (18). Fato que chega a ser emblemático, já que a ideia de se fazer essa série de reportagens especiais nasceu justamente da confusão feita em cima da filosofia e da maneira de se enxergar o futebol nascida ainda no século XIX com o “passing game” e aprimorada ao longo de tantos anos por nomes como Jack Reynolds, Rinus Michels, Johan Cruyff e Pep Guardiola. Veremos aqui que o grande problema do Flamengo não é o “jogo de posição” em si, mas a maneira como ele é executado. E isso nada mais é do que o resultado de um verdadeiro choque de filosofias dentro do clube da Gávea.
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A carreira de Domènec Torrent Font está intimamente ligada à carreira de Guardiola. Depois de comandar equipes menores da Espanha (como o Cassà, o Palamós e o Girona, todos da região da Catalunha), Dome se juntou à equipe de Pep no Barcelona B em 2007. Depois de conquistar tudo com o time principal do Barça, passar pelo Bayern de Munique e pelo Manchester City, Domènec foi para os Estados Unidos e levou o New York City FC para a Liga dos Campeões da CONCACAF e para a segunda colocação na temporada regular. O catalão deixou o clube em novembro do ano passado e foi anunciado como o novo treinador do Flamengo no dia 30 de julho de 2020. Em entrevista concedida ao ótimo canal The Coaches’ Voice (no YouTube), Dome falou um pouco da sua experiência e também do “jogo de posição”. O vídeo está em espanhol, mas legendas em português estão disponíveis nas configurações.
É claro que tudo é muito bonito no papel e na teoria. O grande problema, no entanto, era o fato de que Domènec Torrent chegava ao Flamengo para substituir Jorge Jesus, um dos treinadores mais vitoriosos da história do clube e adepto de um estilo de jogo personalíssimo. E Dome chegou ao Fla com pouquíssimo conhecimento do que se passava aqui e dos jogadores que teria à disposição. Perdeu Rafinha (que foi para o Olympiacos), ganhou Isla e e foi tentando organizar suas ideias de jogo ao mesmo tempo em que tentava fazer com que o elenco “desaprendesse” o estilo de jogo do “Mister”. Sofreu duas derrotas seguidas (Atlético-MG e Atlético-GO), venceu o Coritiba, empatou mais duas vezes e derrotou o Santos na Vila Belmiro já colocando seu “jogo de posição” e um pouco dos seus conceitos. A melhor exibição do Fla sob seu comando, no entanto, seria contra o Bahia.
A vitória sobre o Bahia por 5 a 3 foi a melhor exibição do Flamengo sobre o comando de Domènec Torrent. E a foto acima já mostra um pouco do “jogo de posição” defendido pelo treinador, com os jogadores ocupando “posições-chave” dentro de campo e com Isla aparecendo no ataque sempre que Éverton Ribeiro jogava mais por dentro. Foto: Reprodução / Premiere
Só que os problemas apareceram. Além do estado físico dos jogadores ainda estar abaixo do ideal, a filosofia de jogo proposta por Domènec Torrent encontrou certa resistência dentro do elenco pelo simples fato do estilo de Jorge Jesus ainda estar muito presente na cabeça dos atletas. Fato que é até certo ponto natural dentro de equipes que sofrem uma mudança brusca no comando técnico. Ao mesmo tempo em que o Flamengo fazia muitos gols, a defesa (que era forte, segura e precisa com o “Mister”) passou a oscilar demais por conta dessa necessidade de adaptação rápida ao estilo de jogo do novo treinador. Houve quem reclamasse da distância entre Bruno Henrique e Gabigol no ataque rubro-negro e pela insistência de Domènec Torrent jogar com “pontas” (jogadores que dão amplitude ao time dentro de campo) e do espaço existente entre as linhas do time do Fla.
Domènec Torrent utilizou vários desenhos táticos e tentou adaptar seu estilo ao deixado por Jorge Jesus, mas a equipe do Flamengo oscilou demais nas últimas partidas. A derrota para o Ceará expôs os problemas defensivos e a falta de compactação entre as linhas do time rubro-negro. Fora toda a falta de confiança dos jogadores. Foto: Reprodução / Premiere
A atuação pífia na derrota para o Independiente del Valle causou dois grandes problemas para Domènec Torrent. O primeiro foi o aumento exponencial das críticas dirigidas ao seu trabalho no Flamengo. E o segundo foi a sombra de Miguel Ángel Ramírez, treinador da equipe equatoriana e apontado por muitos jornalistas como o profissional que deveria ter sido contratado pelo clube ao invés do catalão. E aí voltamos ao “jogo de posição”. O Independiente Del Valle aplica um modelo ofensivo praticamente idêntico ao de Dome. A diferença (abissal) entre as duas equipes está em dois pontos: a execução da proposta de jogo e o contexto. Miguel Ángel Ramírez está em “El Negriazul” desde as categorias de base e não sofre pressão nenhuma para implementar suas ideias na equipe principal. Vocês acham mesmo que ele teria paz comandando um time do tamanho do Flamengo?
Miguel Ángel Ramírez aplica os mesmos conceitos do “jogo de posição” defendido por Domènec Torrent. A (ótima) execução da proposta de jogo e o contexto no qual o jovem treinador espanhol está inserido no clube é o que diferencia o Independiente del Valle do Flamengo nesses últimos dias. Foto: Reprodução / Facebook Watch / Conmebol Libertadores
O problema na execução dos conceitos de Domènec Torrent nos faz voltar a Juanma Lillo, auxiliar técnino no Manchester City e um dos grandes mentores de Pep Guardiola. Em entrevista ao jornal inglês “The Blizzard”, Lillo explicou a gênese do “jogo de posição” e a visão de que o futebol é um esporte tão coletivo que torna impossível qualquer análise ou prática sem se entender o contexto. “Não é sobre futebol, é sobre pessoas. Nada pode ser descontextualizado. Como você vive, o que você é, a importância que você dá para os relacionamentos, suas interações, reações… Tudo isso afeta como um time joga”. Difícil não fazer o paralelo com o momento atual do Flamengo. Sem jogadores que entendam e comprem a ideia do treinador, fica praticamente impossível treinar qualquer equipe. É preciso unidade, respeito mútuo e flexibilidade para mudar quando necessário.
Pep Guardiola sobre Juanma Lillo no Man City:
"Existem desavenças, mas isso é legal. Não quero alguém que simplesmente concorde com tudo. Eu preciso de um cara para me empurrar, me desafiar intelectualmente." pic.twitter.com/M2uQ01IqU3
— Man City Brazil (@ManCityBrazil) July 1, 2020
Em outro trecho da entrevista ao “The Blizzard, Juanma Lillo “Nem sempre é possível prever o comportamento humano. Nós sabemos que Messi é perigoso se ele recebe a bola em certos espaços. Mas ele só recebe essa bola dentro de um contexto. Quem passa e quando passa a ele, se o último movimento dele foi de fora ou de dentro, qual o contexto emocional, como o oponente reage. O Jogo de Posição permite que você provoque certas situações dentro desse caos. Ele fortalece o relacionamento entre os jogadores e o time”. Como vimos mais uma vez, tudo está interligado. E a maneira como o elenco encarou a saída de Jorge Jesus e a chegada de Domènec Torrent e a sua mudança de filosofia faz parte desse contexto. Não há uma maneira certa ou errada de se jogar futebol. Só que o “jogo de posição” propriamente dito exige essa ligação e essa conexão entre jogadores e comissão técnica.
Neste sábado, Flamengo seguiu a preparação para o confronto contra o Barcelona de Guayaquil, pela Libertadores. #CRF pic.twitter.com/nJP37UeJP6
— Flamengo (@Flamengo) September 20, 2020
Esse choque de filosofias só vai acabar quando todas as partes cederem e chegarem a um denominador comum, algo que agrade a todos. E é possível sim pensar num Flamengo forte e encorpado para a sequência dessa temporada (que promete ser pesada) adaptando o “jogo de posição” utilizado por Domênec Torrent na vitória sobre Bahia, Fortaleza e Fluminense e algumas coisas do que era feito por Jorge Jesus. Primeiro com a defesa mais alta e mais próxima dos jogadores de meio-campo para cortar as linhas de passe. Filipe Luís poderia jogar mais por dentro com Isla aproveitando o corredor aberto por Éverton Ribeiro na direita. Mais na frente, Arrascaeta jogaria onde rendeu mais com Dome e faria trocas de posições com Bruno Henrique. Tudo para fazer o tal “jogo de imposição” mencionado pelo catalão no vídeo do The Coaches’ Voice. Há como jogar mais e melhor.
A adaptação de alguns conceitos deixados por Jorge Jesus ao “jogo de posição” defendido por Domènec Torrent podem e devem ser utilizados a partir das próximas partidas. Tudo para deixar o Flamengo com mais corpo, mais volume de jogo, mais segurança na defesa e mais intensidade para retomar o caminho das vitórias.
Uma das frases mais icônicas de Juanma Lillo trata da imprevisibilidade do comportamento humano. E o futebol tem dessas coisas. O mesmo técnico que é chamado hoje como “estagiário” ou “eterno auxiliar” foi quem teve a ideia de posicionar o lateral Philipp Lahm como volante durante a decisão da Supercopa da Europa de 2013. O jornalista Marti Peranau falou sobre a mudança tática de última hora no excelente “Guardiola Confidencial”:
Após meia hora de jogo (final da Supercopa Europeia de 2013), acontece uma mudança que marcará toda a temporada do Bayern. Kroos sofre todas as vezes que o Chelsea lança bolas às suas costas, porque sua maior virtude não é girar rápido e defender. Então, Domènec Torrent, assistente de Pep, lhe diz: “E se colocássemos Lahm como volante?”. Guardiola não vacila. Levanta-se rápido e, quase entrando em campo, grita para Kroos: “Toni! Você de 8, você de 8! Philipp de 6!”. Nesse momento, inicia-se uma nova etapa para Philipp Lahm, como volante do Bayern. (…) Em plena final da Supercopa Europeia e com o placar adverso, ordenava que ele assumisse a delicada posição de volante: o eixo do time. Meses mais tarde, no final de novembro, Guardiola recordaria aquele movimento: “As palavras de Dome foram chaves. Se ganharmos alguma coisa nesta temporada, será em razão daquele dia. Ouça bem o que digo: se ganharmos alguma coisa nesta temporada, será por causa do Lahm. Porque posicioná-lo como volante foi o que reordenou todas as peças”.
https://twitter.com/FlaResenhaNews/status/1307209560357208064
Este que escreve não pretende fazer uma defesa ampla e irrestrita de Domènec Torrent. Há sim problemas de execução das ideias de jogo e de comunicação com o elenco (a atuação contra o Independiente del Valle é o que podemos chamar de “batom na cueca”). O que se quer mostrar aqui, no entanto, é que tudo está interligado e que o “jogo de posição” resume bem essas relações humanas dentro das quatro linhas. A torcida do Flamengo está irritada com razão. Porém, é preciso observar bem o contexto antes de se apontar este ou aquele como culpado. Ao mesmo tempo, é preciso também questionar a diretoria do clube sobre esse choque de filosofias que já se desenhava na saída de Jorge Jesus. E aqui temos o ponto crucial dessa discussão. Houve uma ruptura no trabalho vencedor de 2019 e início de 2020. Como retomar o caminho sem que haja conflitos de ideias? É difícil.
E no meio dessa chuva de argumentações está o “jogo de posição” e sua filosofia de relações humanas no futebol. Aliás, o velho e rude esporte bretão tem dessas coisas. Existem estratégias e maneiras de se chegar ao gol que parecem lições de vida. E a que o elenco, comissão técnica e diretoria do Flamengo precisam aprender é a lição da convivência e da cooperação. Futebol se jogam com onze dentro de campo e uma equipe enorme dando suporte. Não há espaço para vaidades de nenhuma espécie.
FONTES DE PESQUISA:
BLOG PAINEL TÁTICO: Cruyff, Michels e van Gaal: as origens do Jogo de Posição, filosofia que une Sampaoli e Torrent
BLOG PAINEL TÁTICO: Como pensa Juanma Lillo, guru e agora auxiliar de Pep Guardiola no City
Entenda o Jogo de Posição, filosofia de Domènec Torrent, novo técnico do Flamengo
A Pirâmide Invertida, por Jonathan Wilson (Editora Grande Área)
Guardiola Confidencial: Um ano dentro do Bayern De Munique acompanhando de perto o técnico que mudou o futebol para sempre, por Marti Peranau (Editora Grande Área)
LEIA MAIS:
Entendendo o jogo de posição (PARTE I) – Origens e conceitos
Entendendo o jogo de posição (PARTE II) – Johan Cruyff, Louis van Gaal e a revolução do Barcelona