Primeiro encontro nacional de mulheres do skate downhill speed e freeride reúne recorde de mulheres na ladeira
“Imagina um monte de mulheres juntas, o poder e a força que tem”. A fala é de Inajara Lopes, 58 anos, a mais velha na reunião ‘DazMina’ – o primeiro encontro nacional das mulheres do skate downhill speed e freeride. Ela foi acompanhada pelas cabeças em concordância entre lágrimas e sorrisos das 20 mulheres reunidas ali. Um recorde de mulheres na pista. Do Rio Grande do Sul ao Alagoas, reunindo gerações em um evento histórico em Timburi, interior de São Paulo.
Foram dois dias de muito skate e troca de experiências. Um sábado cheio de atividades e um domingo de drops livres e muita diversão. Os trabalhos começaram às 7h da manhã com uma aula de Pilates ministrada pela atleta profissional Georgia Bontorin. Seguido pelo workshop na ladeira com Emily Pross – hexacampeã mundial – e Vitória Mallmann, vice-campeã mundial e tricampeã brasileira. Com orientações para remadas, slides, curvas, velocidade e muita empatia. Para cada acerto, uma festa coletiva. Para cada erro, uma enxurrada de apoio e motivação. “Eu vi evolução das meninas em 3 drops. É muito bom ver que todas que estão se ajudando”, comemorou Vitória Mallmann, deslumbrada com a empatia das skatistas. “São todas as mulheres que eu mais admiro no mundo juntas, e eu no meio. Eu nunca imaginei isso”, completou.
Na tarde de sábado, cada participante pode fazer um vídeo no estilo ‘followcar’.O vídeo serviu para que cada uma pudesse analisar o seu próprio rolê na sessão cinema de sábado a noite.
As sementes da novas gerações
Sororidade pode definir a experiência dessa reunião. Um alicerce no movimento do skate downhill feminino. A curitibana Bianca Fior, compartilha do pensamento de que o movimento repercutirá nas próximas gerações. “Mulheres começaram antes e é por isso que a gente tá aqui. A união é importante para o movimento prevalecer”, disse a bicampeã brasileira.
“A gente tem a obrigação de ser grata por essas meninas pioneiras”, exclamou a gaúcha Melissa Brogni, fazendo referência a Christie Aleixo e Reine Oliveira, ali presentes – as primeiras mulheres a competir no downhill brasileiro. “A gente tá fazendo história aqui. Porque é uma modalidade nova, as pessoas não conhecem. Ter um evento planejado para gente se unir, vai fazer isso ter mais força. Não podemos deixar isso morrer, foi só o primeiro passo”, completou a campeã sul-americana.
Representatividade e empoderamento
“Hoje o skate feminino no Brasil está dando um start com a presença da Emily. Ela é uma mulher guerreira, já quebrou muitas barreiras, ela ganha dos caras e tem um rolê muito forte. Eu acho que ela trouxe essa sagacidade pra gente, junto com a Vitória que está representando muito no rolê atual”, ressaltou Reine Oliveira, que está retornando pra ladeira 10 meses após o nascimento da filha Kalu, e se sentiu ainda mais motivada com a participação de Emily Pross no evento.
“Esse evento representa um avanço no skate feminino e um grande empoderamento das mulheres que andam de skate, que é um esporte individual. Normalmente a gente se encontra para competir, nunca para se divertir”, expressou Georgia Bontorin – 2 vezes campeã em etapas mundiais. Georgia começou a andar de skate aos 12 anos, tornou-se profissional aos 16, e hoje aos 23, voltando de uma lesão e depois de operar o joelho errado, a curitibana – que hoje vive em Florianópolis – ressaltou a importância da união das mulheres como resultado desse encontro em Timburi. “A gente precisa se unir e estar nos lugares, não é só andar rápido”, peitou a pequena notável – apelido que ganhou chamando atenção ao encarar ladeiras sinistras, apesar da pouca idade quando iniciou no esporte. Foi a mais jovem a dropar Teutônia, a ladeira mais rápida do país. E completou: “A maioria das vezes a gente está entre homens e se sente sem voz, silenciada, e aqui aqui não. Está sendo incrível”, disse em tom de alívio.
No Downhill, por ser um esporte de extremo risco de vida, é difícil ver menores competindo. A mais jovem no encontro DazMina, por exemplo, foi a paulista Brenda Souza, de 19 anos, 4 de skate.
Já a novata do rolê, Ana Maria Moraes de 26 anos, pratica downhill há 2 meses. Vinda de outros esportes – escalada e boxe – diz ter sentido uma emoção diferente com a comunidade do skate. “Eu tive uma super atenção de todos, ninguém me excluiu. Essa recepção para quem tá chegando é sensacional. O contato, o carinho e a atenção. Estou saindo daqui com vontade de aprender mais”, contou sorrindo de orelha a orelha.
Eles por elas
Para abrir a roda de conversa da noite de sábado, Facão, fundador da YPY Trucks e patrocinador do evento, trouxe a memória de sua sobrinha, Maria Gabriela Poltronieri Borges, vítima de feminicídio, estuprada e assassinada há pouco mais de um mês na cidade de Maringá, Paraná. A tragédia familiar o motivou na luta pelas causas das mulheres e no apoio ao evento. Seu discurso comoveu a todos, lembrando das vivências, da coragem e das lutas femininas cotidianas. Ganhou amparo num abraço coletivo ao final de sua fala.
Além de Facão, os homens presentes – que acompanhavam suas esposas, namoradas e amigas, fizeram valer a expressão de ‘apoio ao skate feminino’. Além de observar e ouvir com atenção, fizeram toda a diferença ajudando na organização e infraestrutura do evento, na captação de imagens e no suporte às mamães skatistas. Christie Aleixo foi acompanhada do marido Renato e ressaltou: “Eu achei lindo ver as mulheres com suas famílias. Isso é construtivo. Isso é força.”
Rogério Baum é um dos exemplos. Skatista e marido da Patrícia Pinto, carregou a filha Cléo de 6 meses pra cima pra baixo na ladeira, enquanto fotografava o rolê da mamãe. Foi o primeiro desafio dela após a maternidade. “Eu me pus em questão e duvidei que eu conseguisse voltar a andar de skate, porque a Cléo tem que mamar e eu não posso me machucar. Eu não conseguiria sem minha parceria com o Rogério, porque ele tá dedicado fulltime com a Cléo para eu estar aqui”. O casal de Floripa não foi o único a levar os filhos para ladeira. De Maresias, Reine Oliveira, pioneira da modalidade também pode aproveitar o drop enquanto o marido, Juliano Casemiro cuidava da Kalu de 10 meses. De Londrina, o papai Douglas Figueiredo ficava com a Maya de 3 anos para Íris Ghelardi botar pra baixo.
“A gente escuta muita piadinha. Tem parar com esse negócio de que menina não dá certo junto, que só tem disputa. Há uma cultura sexista que tenta evitar essa união. Somos diferentes, mas não somos excludentes. Eu sonho com uma sociedade assim, onde a diversidade possa viver em paz. Eu sinto isso nesse encontro”.
Diversidade e Superação
Inajara Lopes, tem 58 anos, é psicóloga aposentada da rede pública. Mora em Valinhos-SP. Começou a andar de skate assim q se aposentou, aos 53. Impressiona ao descer a ladeira de Timburi. Quem poderia imaginar uma senhora praticando um esporte radical, dropando uma das pistas mais desafiadoras do Brasil. “Muitas pessoas acham que se aposentar é se deprimir. Não sou casada e não tenho filhos. Todo mundo achou que eu voltaria a trabalhar quando eu me aposentasse”. Quando Inajara conheceu o skate, vislumbrou outro sentido para sua vida. “Não vai dar para ser uma idosinha comum, vamos andar de skate!”, concluiu. E nesse processo, o skate trouxe para ela autoconhecimento: “Eu tive que entender o que era limitação e o que era medo. Tem que ter consciência para não extrapolar e detonar o seu físico”.
Desafios e reivindicações
Todo atleta tem uma história de superação. As conquistas seguem trajetórias carregadas de desafios. Para as mulheres do downhill não é diferente. Vitória Mallman, conta que além das barreiras para a própria evolução, teve que encarar a dificuldade na aceitação de suas escolhas pela própria família. “Algumas pessoas têm a cabeça meio fechada e tem a ideia de que esse esporte é masculino, que meninas não podem fazer isso, ou que não pode ter um joelho ralado”. A gaúcha de Porto Alegre, tem 21 anos, pratica downhill há 7, e aponta ainda para a falta de visibilidade do espaço feminino na ladeira. ‘Muitas vezes vi vídeos de campeonatos em que as meninas nem aparecem. Parece um campeonato só de homem”, conta indignada com a falta de representatividade na mídia.
Íris Ghelardi lembra ainda de outros estereótipos que precisam ser desconstruídos; como a sensualização das atletas na mídia esportiva. Ela também compartilha de outras dores frequentes, como a sensação de diminuição. “Mesmo no rolê entre amigos, a gente escuta coisas do tipo: Fulana vai te dar uma bina”, como se fosse um absurdo uma mulher ser mais rápida, explicou Íris. Reine conta que por várias vezes quando dropou logo atrás de um homem, este por sua vez, ficava mais preocupado se ela estava chegando perto, do que em curtir o próprio drop. Brenda lembrou que em outros eventos em Timburi, alguns homens tentaram impor que as meninas descessem por último, por julgá-las mais lenta, mesmo sem conhecê-las.
Vitória Mallmann também falou da necessidade de fiscalizar e questionar as desigualdades nas premiações das competições. “Por que não é igual? Se a gente paga mesma a inscrição, desce a mesma ladeira, tem as mesmas dificuldades e os mesmos custos. É a mesma coisa.” Ela destaca que na maioria dos eventos há injustiça na distribuição entre as categorias, pois a premiação não vem do dinheiro das inscrições e sim dos patrocinadores, e por isso deveria ser dividido igualmente, afirmou a vice-campeã mundial.
Acesso ao esporte
Uma barreira apontada por Noemi, 23 anos, de Maceió, para estar mais presente na cena, “é não ter um lugar mais próximo para prática”. Para quem ainda não conhece o esporte, o downhill é praticado em ladeiras de asfalto. Os skatistas costumam andar em estradas abertas, onde tenha pouco movimento de carros. A segurança é feita, preferencialmente, com rádios comunicadores nos extremos do percurso.
Noemi, ou Branca, como é conhecida, atenta também para a necessidade de colaboração e interação entre homens e mulheres, para proporcionar mais abertura para meninas aprenderem a andar de skate. Na região onde mora, é uma das únicas mulheres no downhill. E por não ter categoria feminina no freeride – modalidade que pratica com muita destreza – compete com homens. No slide ‘frontside’ de switch, – manobra que consiste em deslizar o skate na horizontal na maior distância possível, sem pôr as mãos no chão, com a base dos pés trocada -, Branca já venceu por duas vezes deslizando por até 20 metros. E por isso, também, tem se tornado uma referência para mulheres em todo o país. “É bom saber que de uma forma positiva ou seja a referência para algumas pessoas. Eu espero que eu passe uma mensagem boa, de que o skate é para todos”, refletiu a alagoana.
Georgia Bontorin, que já teve experiências fora do país, chamou atenção para mais um ponto de acessibilidade ao esporte. “A maioria das peças vem de fora. Acho que por isso lá tem mais meninas andando, por essa questão do preço de equipamento”, considerou. “E também, lá fora, começou antes o movimento das mulheres. Maryhill (nos EUA) tem um evento só para mulheres. Isso está chegando agora aqui, e vamos aproveitar essa oportunidade para continuar crescendo, se unindo e se fortalecendo”, completou a atleta. Ela sugere algumas atitudes para que haja mais mulheres no downhill: “Tem que encontrar outras meninas que andam de longboard e levar para uma ladeira mais de boa. Fazer workshops, aprender mais a andar do que competir”. Para ela, a competição é um espaço muito pequeno do esporte. “É só para mostrar um resultado e colocar no peito para guardar. Mas a gente tem que ter mais relações humanas, principalmente entre mulheres. Esse é o primeiro passo para mudar alguma coisa”.
Perspectivas além no Skate
Christie Aleixo, 42 anos, 23 de skate, é pioneira no downhill brasileiro no sentido completo da palavra. Foi a primeira mulher a competir num campeonato mundial em 2008 na Vista Chinesa, Rio de Janeiro. Dali em frente, tem inspirado novas gerações com diversos trabalhos voltados para este estilo de vida. “Skate é praticar, é fotografar, gerar conteúdo, é mostrar que a gente pode fazer nossa caminhada independente”, refletiu. Fundadora da Bom Drop, um centro de vivências, que mistura ateliê, pousada e pista de skate em Santana do Parnaíba/SP; Christie almeja que as mulheres consigam vislumbrar o skate dentro de uma rotina de lazer, mas também no mercado de trabalho.
Outra pioneira da cena do downhill, Reine Oliveira, 37 anos, 7 skate concorda com a amiga de longa data. “Hoje, eu tenho uma Skate Shop dentro da galeria do rock e trabalho com skate de todas as modalidades. Todas as meninas aqui tem muito potencial. Eu espero que elas possam estar não só na ladeira, mas também dentro do mercado de trabalho do skate. É importantíssimo ter as mulheres que andam e vivem de skate.”, refletiu.
Uma gringa no Brasil
Emily é a mulher mais rápida do mundo. Além de encabeçar 6 títulos mundiais, foi a única mulher no mundo a vencer uma competição open (entre homens) em um circuito mundial. Emily tem um lema: “I can. I will.” – “Eu posso. Eu vou”, em português. Determinada e comprometida com suas metas, ela treina pesado. Para este ano, almeja correr somente as competições open. “Eu quero ganhar mais corridas com homens”, conta a americana de 23 anos. Um dos objetivos dela é mostrar para as mulheres que é possível correr com os homens, e ganhar deles. O outro, “é criar um campeonato exclusivo para mulheres”, revelou.
Referência e inspiração para as mulheres de todo o mundo, Emily se diz um pouco pressionada com essa responsabilidade de representatividade, mas está contente com a receptividade das meninas. “Eu quero ser um modelo para as meninas e me sinto muito feliz porque as mulheres gostam de mim”. Mas também fala que não tem o mesmo respeito dos homens, principalmente nas competições. “Sinto muito preconceito. Eles não têm respeito com as mulheres”.
A hexacampeã tem um pouco de suporte da família e alguns patrocinadores, mas diz que o mais importante é o suporte dos amigos. “Eu acho que as pessoas precisam estar felizes. É muito importante ter amigos e diversão no skate. Se você não tem amigos, você não tem diversão”. Mencionou seus anfitriões na passagem pelo país: Carlos Paixão, Vitória, Melissa e Yan Bertinati, como parte importante de sua integração por aqui. “Amigos são muito importantes para o suporte. Eu gosto demais do Brasil, as pessoas do Brasil são mais legais. Nos Estados Unidos as pessoas não são tão legais. Eu gosto de tudo no Brasil”, responde em português. Não quer dar entrevista em inglês. “Eu quero aprender o seu idioma”, ela diz. Emily está aprendendo português há 5 meses. Começou 4 meses antes da viagem ao Brasil e passou mais um mês imersa em terras tupiniquins.
O Grand Finale
Como se não bastasse o caráter histórico deste evento, para fechar com chave de ouro, Emily Pross foi desafiada a disputar uma corrida com Bruno Bollinelli – atleta profissional que estava no evento acompanhando a namorada Anna Ohata – considerado um oponente ideal para a americana, pelos proponentes do desafio: os produtores da DH Drops, canal exclusivo da modalidade, que estava ali registrando o evento.
Topando de primeira, Emily Pross deu ainda mais alegria para o encontro DazMina, com uma vitória que carregou todo sentimento de união e transcendência das mulheres reunidas ali. Encheu o ambiente da certeza de que ‘lugar de mulher é onde ela quiser’.
Confira o vídeo do desafio:
Despedida
No domingo, as despedidas foram longas. Ficaram as expectativas para um próximo encontro em breve. A promessa de Cintia Caixeta, é para uma próxima edição em novembro. Cintia se aventura no street luge, modalidade em que se desce deitado num carrinho derivado do skate. Anfitriã da Pousada Cantinho da Figueira, grávida de 4 meses, deu um tempo com o esporte e dedicou-se a recepção e organização do evento. “Queremos fazer dois eventos por ano para unir as mulheres cada vez mais”, almeja.
A pequena cidade de Timburi, tem menos de 3.000 habitantes e abriga uma das ladeiras preferidas dos praticantes de Downhill, em diferentes categorias: Skate, Luge, Sled Inline e Drift Trike. Com percurso de 2,2 Km, 12 curvas e top speed de até 100 km/h. A ladeira termina às margens da represa de Chavantes, proporcionando ainda mais diversão para quem a frequenta. Há cerca de 3 anos, Cintia e Andrew assumiram o controle da Pousada Cantinho da Figueira, localizada no início da pista, e desde então vem fomentando o turismo na cidade com a promoção de eventos de downhill.
As mulheres que fizeram história no Brasil
Paraná e São Paulo foram os estados com o maior número de representantes no encontro, com 7 mulheres, cada um. Do Paraná, 5 são de Curitiba: Anna Ohata, Bianca Fior, Cássia Ferreira, Kátia Passos e Valéria Ribeiro; e 2 de Londrina: Íris Ghelardi e Ana Maria Moraes. De São Paulo: Brenda Souza e Mari Saito da capital, Reine Oliveira de Maresias, Christie Aleixo de Santana de Parnaíba, Inajara Lopes de Valinhos, Graziele Recchia de Piracicaba e Cintia Caixeta, residente em Timburi. De Santa Catarina, foram 2: Georgia Bontorin e Patrícia Pinto, ambas de Florianópolis. Do Rio Grande do Sul, mais 2: Vitória Mallmann e Melissa Brogni. Vinda de mais longe, Noemi, de Maceió, Alagoas, representou a região nordeste. E a americana ministrante do workshop, Emily Pross, veio de Vernon, Nova Jersey.